Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar n.º 75/2003, que altera o art. 151, incisos IV e V, do Código Tributário Nacional (CTN) para condicionar a concessão de liminares em ações judiciais tributárias ao depósito integral do tributo supostamente devido.
O que mais impressiona, contudo, é a justificativa do Deputado Eduardo Cunha para o projeto de lei apresentado, que transcrevemos:
"Consagrada pelo direito consuetudinário nacional, a tutela antecipada de tributos ou contribuições municipais, estaduais ou federais vem, ao longo do tempo mostrando-se injusta e claramente lesiva aos interesses tanto do contribuinte quanto do Poder Executivo. É sabido que existe uma indústria de liminares no País, inclusive objetos de uma investigação por Comissão Parlamentar de Inquérito sobre combustíveis, onde Empresas obtém tutelas antecipadas, comercializando produtos ficam com dinheiro dos tributos e contribuintes, e ao fim essas empresas somem sem nenhuma possibilidade do Poder Público reaver esse dinheiro. O estabelecimento do depósito judicial para concessão da tutela antecipada ou liminar impedirá a sangria aos cofres públicos."
A justificativa beira ao absurdo. Defender que a concessão de tutela antecipada em ações judiciais é injusta e lesiva aos cofres públicos demonstra a ausência de conhecimento mínimo do sistema jurídico nacional. É que os provimentos liminares, decisões proferidas logo no início do processo, gênero no qual se enquadra a tutela antecipada, devem ser deferidas apenas como exceção, o que quer dizer, apenas quando demonstrados pelo postulante todos os requisitos necessários ao seu deferimento. Aliás, quase que a unanimidade dos juízes têm sido extremamente criteriosa na análise destes requisitos. Como se isso não bastasse, o provimento liminar é um direito garantido constitucionalmente, que decorre diretamente dos princípios do livre acesso ao judiciário, da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, todos previstos no art. 5º da Constituição Federal. É direito constitucional do contribuinte a obtenção de provimento liminar em qualquer ação que seja independentemente de depósito. Além disso, é obrigatório o deferimento da medida antecipatória quando cumpridos os requisitos legais. A justificativa ainda põe em cheque a credibilidade e a honestidade do Poder Judiciário, ao afirmar que existe uma indústria de liminares. Neste ponto é importante dizer que se há indústria de liminares é porque existe produto para tanto. E não calha dizer que as empresas somem sem que possa o Poder Público reaver o dinheiro dos supostos tributos indevidos. Aos milhões são os casos em que as execuções fiscais têm sido redirecionadas contra sócios e ex-sócios, inclusive aqueles que não constam da Certidão de Dívida Ativa. Além disso, cumpre referir que a sangria é cometida diariamente no bolso do contribuinte, que despende mais de 50% de seu rendimento anual em tributos, cujo retorno em serviços públicos é quase que imperceptível.
Em que pese a crítica ao Projeto que tramita no Congresso, grande parte dos juízes e desembargadores federais já tem adotado este entendimento e não concedem liminar ou tutela antecipada sem que o contribuinte deposite o valor integral do tributo questionado. Entretanto, em poucas linhas pode-se demonstrar o equívoco deste entendimento.
Presentes nos autos do mandado de segurança ou nas ações declaratórias e anulatórias os pressupostos para o deferimento da medida liminar, não pode o juiz exigir o depósito do montante integral do tributo. Primeiramente, porque o art. 7º, inciso II, da Lei 1.533/51 é claro ao listar como requisitos ao deferimento da medida liminar em mandado de segurança apenas e tão-somente a relevância do fundamento e possibilidade de ineficácia da ação acaso não deferida. Já para a tutela antecipada, descrita no art. 273 do Código de Processo Civil, os pressupostos são a prova inequívoca, a verossimilhança da alegação, o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação e a reversibilidade da medida. Como se vê, em nenhuma das hipóteses se inclui o depósito do montante integral. Segundo, porque presentes os requisitos, está o juiz obrigado ao deferimento da liminar ou da tutela antecipada, entendimento que decorre da mesma disposição legal acima referida. Terceiro, porque o depósito do montante integral e o deferimento de liminar ou tutela antecipada são causas autônomas que suspendem a exigibilidade do crédito tributário, não sendo lógica a cumulação destes dois meios. Ambos têm a mesma finalidade, qual seja, suspender os atos de cobrança efetivados pelo Fisco.
Com relação ao mandado de segurança, cumpre referir que a exigência do depósito para que deferida a medida liminar esvazia por completo a sua utilidade, que se centra justamente no fato de autorizar a discussão do crédito tributário sem que tenha o impetrante/contribuinte de despir-se de seus bens ou de correr o risco de ser executado pelo Fisco. O depósito retira esta utilidade, na medida em que por si só já suspende a exigibilidade do crédito tributário. Portanto, ou se defere a liminar suspendendo o ato ou se deposita o valor controvertido, posto que ausente qualquer justificativa prática, lógica ou legal que imponha a sua cumulação.
Assim, espera-se que o Projeto de Lei Complementar n.º 75/2003 não evolua, sob pena de mais uma vez restarem afrontados os direitos garantidos constitucionalmente aos contribuintes.